Por: Luis Antonio Texeira e Ana Palma
Em 1859, o médico e naturalista Félix-Archimède Pouchet, diretor do Museu de História Natural de Rouen, publicou Heterogênese, na qual apresentava sua teoria sobre geração espontânea.
Pouchet afirmava que todas as formas de vida nascem de ovos, mas que, às vezes, esses ovos nasciam por geração espontânea. Para ele, três fatores eram necessários para a ocorrência da abiogênese,que atribuía à providência divina: materia orgânica em decomposição, ar e água. O crescimento era auxiliado pela eletricidade e pela luz do sol. A luz vermelha ajudava a formação de proto-organismos animais; já a luz verde colaborava para o nascimento de proto-organismos vegetais.
Ele apresentava uma série de experiências, demonstrando que não havia contaminação pelo ar. Pouchet selara hermeticamente um frasco de água fervente, colocando-o de cabeça para baixo em uma bacia de mercúrio. Quando a água já estava quase fria, abria o frasco dentro do mercúrio e introduzia um litro de oxigênio puro e uma pequena quantidade de feno, previamente exposto, por um longo tempo, a alta temperatura. Alguns dias depois, organismos haviam surgido no frasco.
Face à grande polêmica causada por seus resultados, a Academia de Ciências de Paris propôs um prêmio para o trabalho que melhor esclarecesse a questão. Apesar da oposição de seus amigos e companheiros de trabalho, Pasteur, à época já um cientista respeitado, decidiu participar. com uma série de experimentos para provar que os microorganismos, que pareciam nascer espontaneamente, provinham do ar.
Pasteur colocou um líquido putrescível em balões com uma abertura em formato de bico de cisne e ferveu-os; durante a ebulição, fechou-os, sendo necessário quebrar a extremidade para que o ar penetrasse. Finalmente levou-os à estufa aquecida. Pasteur observou que a turvação dos balões dependia do lugar onde os abria. Para ele, isso ocorria porque algumas porções de ar continham germes, outras não.
Para confirmar sua hipótese, realizou, em 1860, a célebre experiência do Monte Jura. Utilizou vários balões contendo água e levedo de cerveja filtrado e fervido, abrindo-os em diferentes altitudes. Aqueles abertos nas regiões mais altas apresentaram menos contaminação que os abertos no campo, o que parecia provar que a quantidade de germes no ar diminuía com a altitude.
Embora retirando-se temporariamente da contenda, Pouchet e seus seguidores duvidaram do resultado das experiências de Pasteur. Em 1863, repetiram a mesma experiência nos Pirineus, utilizando infusões de feno em lugar de levedo de cerveja e sem empregar mercúrio Após retornarem, observaram que todos os balões continham micro-organismos.
Para dar fim ao debate, a Academia de Ciências nomeou uma comissão que repetiu as experiências de Pasteur, chegando às mesmas conclusões: não havia a geração espontânea e a turvação dos balões se dava em razão da existência de microorganismos em suspensão no ar. Pouchet retirou-se da polêmica, acusando a comissão de favoritismo.
Se Pouchet tivesse continuado, era possível que a conclusão fosse diferente. Embora Pasteur tivesse razão quanto à inexistência da geração espontânea, sabe-se hoje que a diferença dos resultados devia-se ao material utilizado. O feno – ao contrário do levedo – contém germes ou esporos resistentes à fervura, que se desenvolvem em contato com o oxigênio.
Os bastidores da disputa
Na controvérsia sobre a geração espontânea não se pode deixar de levar em conta o cenário religioso e político. A teoria da geração espontânea tinha sido bastante popular, por ter sido associada à transmutação de espécies (transformismo) e apoiada por Lamarck e Saint-Hillaire.Em 1802, Georges Cuvier lançou uma campanha vigorosa contra as posições destes dois cientistas, que culminou com um célebre debate contra Saint-Hillaire em 1830.
Os debates entre Pasteur e Pouchet e o de Cuvier e Saint-Hilaire apresentavam grandes semelhanças em termos de situação política. A França vivia um momento de conservantismo, após as experiências republicanas da década de 1840. Cuvier lançou sua campanha no Primeiro Império, Pasteur no Segundo. Luis Napoleão recebera o apoio da Igreja para tornar-se Imperador. As forças do governo e do estado estavam unidas contra o inimigo comum: republicanismo e ateísmo. O clima tinha sido exacerbado pela publicação de uma tradução de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, com um prefácio incendiário que atacava a Igreja Católica.
Pasteur acreditava sinceramente na existência de um Deus-Criador, mas não possuía nenhuma paixão doutrinária particular. Patriota fervente, era um retrato da burguesia francesa do século XIX. Bonapartista, era um conservador político. Em resumo, seus valores e crenças refletiam os do Segundo Império. Sabia ainda que, num momento em que a geração espontânea e a teoria evolucionista era encaradas como uma ameaça à ordem estabelecida, sua campanha era um presente para o imperador, que retornou o favor de diversas formas. Como Saint-Hillaire, Pouchet foi associado às forças do materialismo, transformismo e ateísmo, que repudiara explicitamente.
Obs: Inspirado em um módulo da primeira versão da exposição Vida (1995). Curadores: Nísia Trindade, Luis Otávio Ferreira e Luis Antônio Teixeira.
Outras fontes:Kruif, Paul de. Caçadores de Micróbios. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1945.
Wilkins, John S. Spontaneous Generation and the Origin of Life
Data Publicação: 29/11/2021