Em entrevista, ativistas explicam que mudanças climáticas podem causar desde ondas de calor até enchentes e deslizamentos nas favelas
Você sabia que as mudanças climáticas podem impactar de forma diferente a vida das pessoas? Infelizmente, as populações mais pobres e que convivem diariamente com a falta de vários serviços essenciais, como saneamento, saúde e educação, são as que mais sofrem com as transformações no clima.
A ausência de infraestrutura adequada, de áreas verdes e de serviços públicos agrava ainda mais os impactos das mudanças climáticas nas favelas, criando um ciclo de desigualdade ambiental. Isso significa que as pessoas que vivem nessa realidade de vulnerabilidade convivem permanentemente com dificuldade de acesso a aspectos ambientais positivos como ar puro, água potável e áreas verdes. Por outro lado, elas também permanecem constantemente expostas a mais riscos ambientais, por exemplo, poluição, enchentes e deslizamentos.
Tudo isso coloca as populações mais pobres ainda mais em risco. Isso é um fato que vem sendo, inclusive, evidenciado em estudos, tal como na “Análise de Risco e Vulnerabilidade Climática do Conjunto de Favelas da Maré“, publicada em 2023. A investigação foi desenvolvida pela organização Redes da Maré em parceria com uma empresa de consultoria estratégica em sustentabilidade.
Para entender o efeito das mudanças climáticas nas favelas, o Invivo conversou com duas ativistas climáticas que entendem bem do assunto. Confira abaixo quem são elas!
Gabriela Santos
Uma das nossas entrevistadas é Gabriela Santos, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte do município do Rio de Janeiro (RJ), e cofundadora da ONG Voz das Comunidades. Graduanda em geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ela se dedica a investigar potencialidades dos territórios e mudanças climáticas, com foco em mobilização e criação de soluções inclusivas.
Julia Rossi
A outra entrevistada é Julia Rossi, biofísica formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em geografia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ela pesquisa a desigualdade espacial e a luta por justiça ambiental, principalmente o acesso ao saneamento básico em favelas no Rio de Janeiro. Ela também tem uma longa trajetória de atuação junto à organização Redes da Maré.
Invivo: Quais tipos de problemas as mudanças climáticas causarão às favelas e periferias?
Julia Rossi: Em 2021, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) confirmou que a ação humana é responsável pela maior parte do aquecimento global observado no último século. Segundo o relatório, as mudanças climáticas provocarão o aumento de eventos extremos, como tornados, chuvas de granizo, rajadas de vento e fortes chuvas, elevando as possibilidades de inundações. Essas inundações podem causar o transbordamento de esgotos, alagamento de casas e um aumento do risco de contaminação por doenças de veiculação hídrica (transmitida pelo consumo de água contaminada por microrganismos que causam doenças).
Nas cidades, as favelas já sentem os efeitos das mudanças climáticas, manifestados em enchentes e deslizamentos. A falta de políticas públicas direcionadas a esses territórios agrava ainda mais a situação. Um documento da Coppe/UFRJ (Franco, 2016) sobre estratégias de adaptação às mudanças climáticas na cidade do Rio de Janeiro identificou o potencial de exposição e avaliou a vulnerabilidade de várias zonas da cidade.
O documento destaca que a região das 16 favelas da Maré, especialmente Nova Holanda, apresenta uma alta propensão a inundações e altas temperaturas. Essas transformações ambientais, cada vez mais evidentes, já impactam a vida de muitas pessoas. Existem ações e políticas que podem ajudar a mitigar esses impactos nas populações mais vulneráveis.
Em resumo, a geografia das favelas no Brasil é diversa, e os problemas relacionados às mudanças climáticas podem apresentar características distintas. Nas favelas localizadas em áreas de encosta, por exemplo, há uma maior suscetibilidade a deslizamentos durante períodos de chuvas intensas, enquanto aquelas em áreas de baixada e aterros podem sofrer com enchentes e alagamentos. Além disso, a ausência de políticas efetivas de saneamento e arborização contribui para esse cenário.
Invivo: Qual é a importância de mapear os riscos para as favelas brasileiras de acordo com a intensificação da crise climática?
Gabriela Santos: É importante porque se trata de entender as vulnerabilidades específicas dessas áreas em relação à intensificação da crise climática. As favelas enfrentam desafios como enchentes, deslizamentos de terra e ondas de calor, agravados pela falta de infraestrutura adequada.
Esse mapeamento permite identificar as áreas mais vulneráveis e desenvolver estratégias de mitigação e adaptação. Além disso, facilita a alocação de recursos de forma mais eficiente e a implementação de políticas públicas que atendam às necessidades reais da população. Também fornece dados essenciais para o planejamento de tudo isso.
Julia Rossi: Mapear os riscos é fundamental para compreender as vulnerabilidades específicas das favelas diante da crise climática. Essa prática permite identificar áreas propensas a deslizamentos, inundações e outras ameaças, facilitando o planejamento de intervenções e políticas públicas adequadas. O mapeamento fornece dados que podem ser utilizados para mobilizar recursos e conscientizar a população sobre os riscos e medidas de prevenção.
Invivo: Vocês acreditam que as favelas brasileiras estão bem contempladas nos planos nacional e municipais de ação climática?
Gabriela Santos: Infelizmente, não. Apesar de avanços, como a retomada do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), de 2016, que vem sendo atualizado, há um longo caminho para assegurar que essas áreas vulneráveis recebam a atenção necessária. As favelas enfrentam desafios únicos, como alta densidade populacional, infraestrutura precária e condições de habitação inadequadas, que as tornam especialmente suscetíveis aos impactos das mudanças climáticas.
Julia Rossi: De modo geral, as favelas ainda são sub-representadas nos planos de ação climática. É imprescindível incluir a voz e as necessidades das comunidades periféricas para garantir que essas áreas recebam a atenção adequada e recursos suficientes para enfrentar os desafios climáticos, respeitando suas especificidades, cultura e memória. Processos participativos, de consulta e construção coletiva são fundamentais para que esses planos abranjam a complexidade desses territórios.
Invivo: Para alguns dos problemas mapeados que podem ocorrer em favelas, existem soluções que podem ser implementadas? Quais?
Gabriela Santos: Para resolver os problemas climáticos nas favelas, é importante adotar uma abordagem prática e acessível. A criação, por exemplo, de áreas verdes e jardins de chuva pode ajudar a absorver a água e reduzir o risco de enchentes, além de melhorar a qualidade do ar. Reforçar as construções e melhorar a infraestrutura das casas é importante para que resistam melhor a desastres naturais, garantindo que as obras do governo federal usem materiais mais duráveis e técnicas seguras. Além disso, é necessária a garantia de manutenção regular dos bueiros para evitar alagamentos nos territórios.
Julia Rossi: Destaco algumas possibilidades, como implantar sistemas de drenagem que utilizem técnicas como bioengenharia (área de atuação que une os conceitos de engenharia aos da biologia), valas de infiltração (vala escavada no solo utilizada no tratamento e manejo sustentável de águas residuais) e chão permeável para reduzir alagamentos. Ou, por exemplo, incentivar a criação de telhados verdes, que ajudam a regular a temperatura e absorver água da chuva.
Projetos de urbanização também são bem-vindos. Eles podem melhorar a infraestrutura básica, como saneamento, iluminação pública e acesso a serviços de saúde e educação. É essencial criar e manter parques e áreas verdes de lazer que também funcionam como locais de absorção de água.
Os moradores também podem receber formações e treinamentos sobre práticas de gestão de resíduos, cuidados com o meio ambiente e preparação para desastres. Outra estratégia é desenvolver aplicativos que ajudem os moradores a reportar problemas, como alagamentos ou deslizamentos, permitindo o compartilhamento de informações sobre riscos. Sem falar na possibilidade de implementação de sistemas de monitoramento em tempo real para alertar sobre condições climáticas extremas e riscos potenciais.
Invivo: Como exigir dos governantes a resolução desses problemas?
Gabriela Santos: Para exigir dos governantes a resolução dos problemas enfrentados pelas favelas e periferias, é essencial adotar uma série de ações coordenadas e bem estruturadas. Primeiramente, a mobilização comunitária é crucial. Organizar a comunidade para exigir mudanças através de reuniões públicas que mostram a união dos moradores frente aos problemas enfrentados. Quando a comunidade se une, ela pode amplificar sua voz e pressionar por soluções mais eficazes. Além disso, parcerias com ONGs são fundamentais, bem como a pressão política e a eleição de representantes comprometidos.
Julia Rossi: A responsabilidade de garantir direitos, como o acesso a saneamento básico adequado, é do Estado. A sociedade civil, como Redes da Maré e outras instituições na região, tem a tarefa de cobrar do Estado que ele cumpra esse papel.
A partir de encontros sobre saneamento com especialistas e moradores, foi possível construir uma agenda que se materializou na Carta de Saneamento da Maré. Essa carta integra as agendas locais 2030, em parceria com a Casa Fluminense, e foi direcionada a candidatos nas eleições municipais. Além de contribuir para a conscientização sobre a importância do direito ao saneamento na mitigação dos impactos da crise climática, a carta é um material elaborado de forma participativa, contendo demandas para a implementação de políticas públicas.
Invivo: É possível dizer que moradores de favelas e periferias vão sentir mais os efeitos negativos das mudanças climáticas do que outros moradores de áreas com mais infraestrutura? Por quê?
Gabriela Santos: Certamente. Moradores de favelas e periferias tendem a sentir mais os efeitos negativos das mudanças climáticas devido à falta de infraestrutura básica, como saneamento, sistemas de drenagem e habitações seguras. A vulnerabilidade dessas áreas é intensificada pela densidade populacional e pela precariedade das construções, que, muitas vezes, não são projetadas para resistir a eventos climáticos extremos. Além disso, sabemos que as comunidades geralmente têm menos acesso a recursos financeiros, serviços de emergência e suporte governamental, o que dificulta a recuperação após desastres naturais.
Julia Rossi: Sim, as injustiças ambientais no contexto brasileiro afetam profundamente as parcelas da população que vivem em espaços favelados e periféricos. A ausência de políticas públicas elaboradas de forma participativa impossibilita a consideração das particularidades desses territórios, dificultando a redução das vulnerabilidades socioambientais presentes.
Os riscos ambientais são diferenciados e desigualmente distribuídos, considerando a capacidade dos grupos sociais de escapar dos efeitos desses riscos. A perspectiva racial é fundamental para entender essa distribuição desigual.
O racismo ambiental nos leva a refletir sobre como as áreas de conflitos ambientais e zonas de vulnerabilidade socioambiental são, em sua maioria, habitadas por populações negras e indígenas. A justiça ambiental é uma noção emergente que integra o processo histórico de construção subjetiva da cultura dos direitos. Essa noção surgiu da criatividade estratégica dos movimentos sociais, que alterara a configuração das forças sociais envolvidas nas lutas ambientais, criando espaços de ação e empoderamento que devem ser valorizados na busca por uma sociedade justa e saudável.
Fontes consultadas:
Santos, Teresa. Racismo ambiental: o que é isso? Invivo. Disponível em: https://www.invivo.fiocruz.br/sustentabilidade/racismo-ambiental/. Publicação em: 13 mai 2022
Redes da Maré e WayCarbon. Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas do Conjunto de Favelas da Maré. 2023. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/Analise_de_Risco_WayCarbon.pdf
IPCC. Painel Intergovenamental sobre mudança do clima. Mudança do Clima 2021. A Base Científica. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/IPCC_mudanca2.pdf
Franco, Nelson Moreira et al. Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ. Prefeitura do Rio de Janeiro. Centro Clima. 2016. Disponível em: http://rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/9857523/4243335/EstrategiadeAdaptacaoasMudancasClimaticasdaCidadedoRiodeJaneiro.pdf
Basil, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), 2016. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/mudanca-do-clima/plano-nacional-de-adaptacao.
Casa Fluminense; Data_Labe; Redes da Maré (org.). Carta de saneamento da Maré 2020. 1.ed. Rio de Janeiro: Associação Casa Fluminense, 2021. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/COCOZAP-CARTA-DE-SANEAMENTO-DA.pdf
*Todos os sites foram acessados em 29 de outubro de 2024.
Por Fernanda Lima
Esse texto é fruto de uma chamada de artigos exclusiva para participantes da 2ª edição da “Oficina de Jornalismo de Ciência e Saúde para Comunicadores Populares”, realizada em 10 de agosto de 2024 no Museu da Vida Fiocruz, Rio de Janeiro (RJ).
Data Publicação: 10/12/2024