Esse texto é fruto de uma chamada de artigos exclusiva para participantes da “Oficina de Jornalismo de Ciência e Saúde para Comunicadores Populares”, realizada em 19 de agosto de 2023 no Museu da Vida Fiocruz, Rio de Janeiro (RJ).
Veja como a saúde pública para pessoas trans está atuando no Brasil, quais procedimentos estão disponíveis e quem pode realizá-los
Você sabia que, desde 2009, o uso do nome social no acesso à saúde pública para pessoas transexuais e travestis é um direito? Sim! A portaria n° 1.820 do Ministério da Saúde garante – ou deveria garantir – que pessoas que não se identificam com o gênero atribuído ao nascimento sejam tratadas pelo nome com o qual se identificam socialmente.
Desde 2011, também há uma política pública de saúde específica para esta população: a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Apesar dos avanços, ainda existem muitos desafios. Veja abaixo o que temos e os pontos que precisamos avançar na atenção da saúde pública para pessoas trans e toda a população LGBTQIAPN+.
Decifrando a sigla LGBTQIAPN+
L – Lésbicas: pessoas que se identificam com o gênero feminino e se relacionam com outras do mesmo gênero;
G – Gays: pessoas que se identificam com o gênero masculino e se relacionam com outras do mesmo gênero;
*B – Bissexuais: pessoas que têm atração sexual por todos os gêneros;
T – Transexuais, travestis e transgêneros: pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento;
Q – Queer: termo de origem norte-americana que engloba todas as pessoas que fogem das normas sociais de gênero e sexualidade impostas pela sociedade;
I – Intersexo: pessoas que apresentam características corporais que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos;
A – Assexuais: pessoas que não possuem atração sexual;
*P – Pansexuais: pessoas que se relacionam com outras de todos os gêneros, incluindo feminino, masculino e os que não se identificam com um gênero específico (não-binários);
N – Não-binários: pessoas que não se identificam com o gênero feminino ou masculino, podendo se identificar com mais de um ou nenhum;
+ – pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento (não-cis) e que não se consideram trans, e todas que se relacionam com outras que não do gênero oposto (não-hétero). Indica ainda que a comunidade está em constante mudança e podem surgir novas identidades com o passar do tempo.
* Atualmente, as definições de bissexual e pansexual são muito próximas. As diferenças residem principalmente no contexto em que foram criadas e na forma como cada um se identifica (autoidentificação).
Como as pessoas trans acessam o sistema de saúde?
Uma das principais portas de entrada aos serviços de saúde pública para pessoas trans, travesti e não-binárias são as unidades que trabalham com demanda espontânea. Este é um tipo de serviço que atende ao público sem necessidade de agendamento prévio, tal como as unidades básicas de saúde (UBS).
Segundo a médica Emilia Jalil, pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), como a população LGBTQIAPN+ é muitas vezes afastada dos serviços de saúde em geral, a demanda espontânea torna-se frequentemente o primeiro passo. “Acho que esse é o direito básico e fundamental que toda pessoa tem, e que, muitas vezes, é negado às pessoas trans”, afirma.
As UBSs, os postos de saúde e clínicas da família fazem parte da rede de atenção primária e são geridos pelos municípios. Você pode encontrar a UBS mais próxima de você no site das secretarias municipais de saúde e também por meio da Ouvidoria do Ministério da Saúde: Disque Saúde 136.
Adequação do corpo à identidade de gênero
Ao chegar à atenção primária, será feita uma avaliação e, quando necessário, o encaminhamento para atenção em ambulatórios especializados ou hospitais. Nesses locais, é possível ter acesso ao Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS).
O Processo Transexualizador do SUS é um conjunto de ações voltadas à afirmação de gênero, isto é, ao alinhamento do corpo à identidade de gênero. Entre as medidas contempladas nesse processo, estão terapias hormonais (hormonização) e cirurgias de modificação corporal e genital. E ainda o acompanhamento por uma equipe de profissionais da saúde especializado em várias áreas.
Crianças e adolescentes trans podem tomar hormônios ou mudar de sexo pelo SUS?
Para dar seguimento a cada uma dessas etapas de alinhamento à identidade de gênero, tão fundamental para o acesso à saúde pública das pessoas trans, é necessário cumprir alguns requisitos. É um equívoco, por exemplo, achar que crianças trans passam por processos de hormonização. No SUS, para ser submetido a essa terapia é necessário ter mais de 18 anos de idade. E as cirurgias de modificação corporal e genital só são feitas com indicação médica e em maiores de 21 anos.
O Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 2.265/2019), no entanto, recomenda o uso de hormônios para pessoas trans que tenham indicação a partir dos 16 anos. Esta terapia pode melhorar o sentimento de desconforto com o próprio corpo. Também pode trazer benefícios para a vivência social do adolescente, além de evitar consequências à sua saúde mental, como a depressão e outros transtornos.
Os adolescentes podem ser consultados sem a presença obrigatória de um responsável legal. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o adolescente tem o direito à privacidade no momento da consulta. Outros direitos são: garantia de confidencialidade e sigilo, poder de consentir ou recusar atendimento e ser informado sobre seu estado de saúde.
Antes desta idade, o caminho é outro. As crianças na fase anterior à adolescência que se sentem desconfortáveis com relação ao gênero de nascimento devem, segundo o CFM, ser apenas acolhidas e acompanhadas por diferentes profissionais da saúde.
O cuidado das crianças e adolescentes trans é uma questão que exige atenção redobrada. Segundo um levantamento da ONG Minha Criança Trans feito, entre 2019 e 2023, existiam mais de 20 projetos de lei que potencialmente atentavam contra os direitos de acesso à saúde especializada dessa população. Entre as propostas, havia pautas que criminalizavam a atenção médica especializada a crianças e adolescentes trans. A pesquisa foi apoiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS).
Saúde além da afirmação de gênero
As demandas de saúde das pessoas trans vão além daquelas relacionadas à adequação do corpo ao gênero que se identificam. Envolve atenção a sintomas agudos como dor de cabeça e febre, bem como o acompanhamento de doenças crônicas, por exemplo, diabetes e hipertensão. Isto é, eventos não relacionados à hormonização. E, assim como as pessoas cisgênero, isto é, que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento, as pessoas trans também precisam realizar consultas e exames preventivos. Ter acesso pleno à saúde é também uma forma de reduzir a vulnerabilidade social desta população.
Uma portaria (nº 1.693) do Ministério da Saúde, publicada em maio de 2024, trouxe uma boa notícia! Ela promete facilitar o acesso das pessoas trans a muitos procedimentos, incluindo exames e consultas de rotina. Com a medida, vários serviços poderão ser acessados por ambos os sexos.
Quer ver um exemplo prático da aplicação desta portaria? Pessoas transmasculinas com útero, isto é, que foram designadas como mulheres ao nascimento, mas se identificam como homens, já podem acessar serviços ginecológicos e obstétricos no SUS mesmo que tenham alterado seus documentos e que, na atualidade, conste “sexo masculino”.
A medida publicada este ano colabora, portanto, com a ampliação do acesso à saúde pública para pessoas trans. O médico de família Anderson Martins lembra que é necessário atentar para todas as dimensões desse processo. “Não se trata apenas da entrada de alguém nos serviços de saúde básica. É ser bem recebido, acolhido e respeitado”, destaca o médico, que participa de ações voltadas ao cuidado integral da comunidade LGBTQIAP+ em Clínicas da Família da cidade do Rio de Janeiro. Ele reforça ainda a necessidade de promover um movimento de humanização da saúde para que todas as pessoas sejam, de fato, tratadas de forma igualitária, como seres humanos. Outra necessidade é a capacitação dos profissionais da saúde para melhorar o atendimento das pessoas trans.
Atenção e prevenção às ISTs
A comunidade trans, travesti e não-binária ainda é uma das que mais sofre com os impactos da epidemia de HIV/aids no Brasil e no mundo. Dados do UNAIDS revelam que a prevalência global de infecção pelo HIV chega a 19% entre pessoas trans. E, portanto, os serviços de saúde que previnem e tratam infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) são também uma frente importante no contexto da saúde das pessoas trans.
O Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz) tem um longo histórico de atendimento à população LGBTQIAPN+. Atualmente, existem diversos projetos, entre eles, ações de prevenção contra o HIV a partir do uso de medicamentos. Isso inclui a oferta de PEP e PrEP.
No primeiro caso (PEP), estamos falando de profilaxia “pós-exposição”, ou seja, os medicamentos são tomados após uma provável exposição ao HIV. Trata-se, portanto, de uma medida de prevenção de urgência. Já, no caso da PrEP, a profilaxia é “pré-exposição”, isto é, os remédios são tomados antes da exposição ao vírus. A PrEP é indicada para pessoas a partir de 15 anos de idade, sexualmente ativas e que apresentam risco aumentado para a infecção pelo HIV.
Saiba mais:
HIV: conheça as diferenças entre PEP e PrEP
Precisamos falar sobre sexo e ISTs
Mas além de atenção médica e cuidados especializados, o INI-Fiocruz também promove acompanhamento da saúde sexual, grupos de apoio e rodas de conversa. Laylla Monteiro, que atua na educação comunitária da instituição, afirma que, apesar dos muitos retrocessos pelos quais a comunidade LGBTQIAPN+ passou nos últimos anos, o cenário está mudando. Felizmente.
Fontes consultadas:
Brasil, Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2836_01_12_2011.html. Acesso: 9 mar 2024.
Brasil, Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.803, de 19 de novembro de 2013(*). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html. Acesso: 9 mar 2024
Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.265/2019. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2265. Acesso: 9 mar 2024.
Brasil, Ministério da Saúde. Portaria nº 1.820 de 13 de agosto de 2009. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1820_13_08_2009.html. Acesso: 9 mar 2024.
Brasil, Presidência da República. Nota Pública – Portaria nº 1.693/2024 da SAES/MS. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/nota-publica-portaria-n-1693-2024-da-saes-ms. Acesso: 23 maio 2024.
UNAIDS. Dia da Visibilidade Trans: propostas de projetos de lei podem criminalizar a atenção médica a crianças e adolescentes trans. Disponível em: https://unaids.org.br/2023/03/dia-da-visibilidade-trans-propostas-de-projetos-de-lei-podem-criminalizar-a-atencao-medica-a-criancas-e-adolescentes-trans/. Acesso: 23 maio 2024.
Por Dhiego Monteiro
Data Publicação: 27/06/2024
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