Em entrevista ao Invivo, pesquisador explica o conceito
Já ouviu falar em Antropoceno? Vamos descobrir tudo sobre a chamada ‘época dos humanos’ em um bate-papo com André Felipe Cândido da Silva, historiador, biólogo, pesquisador e professor da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Mas, antes de iniciar essa conversa, vamos voltar um pouquinho no tempo… Os cientistas estimam que o nosso planeta possui cerca de 4,5 bilhões de anos. E, para entender melhor sua história, eles criaram uma escala de tempo baseada no registro rochoso. Assim, surgiram as chamadas eras geológicas.
Atualmente, os livros didáticos informam que estamos na era Cenozoica, no período Quaternário e na época geológica do Holoceno. Mas, para muitos pesquisadores, é possível que tenhamos avançado nessa escala e que estejamos em uma nova época. Já deve estar imaginando que época é essa, certo? Sim, vamos entender melhor o chamado Antropoceno!
Invivo: O que é o Antropoceno?
André Felipe Cândido da Silva: Antropoceno é o nome proposto para a nova época geológica que vem após o Holoceno. O Holoceno iniciou há cerca de 11,7 mil anos e é caracterizado pela estabilidade climática e ambiental do Sistema Terrestre. O nome ‘Antropoceno’ provém da ideia de que o principal fator responsável pelas mudanças planetárias em curso, que justificam o estabelecimento de uma nova época geológica, é a espécie humana.
Invivo: Qual é a magnitude dessas mudanças planetárias?
André: As transformações provocadas pelos seres humanos no planeta atingiram uma escala a ponto de equivalermos à magnitude das forças geológicas. Entre essas transformações, está a aceleração da taxa de extinção de espécies. Alguns cientistas chamam de “Sexta Grande Extinção”. Mas, diferentemente das outras cinco extinções em massa que ocorreram na história geológica, esta acontece em escala e velocidade sem precedentes em consequência de ações humanas.
Além disso, há o aumento da concentração na atmosfera de gases estufa, isto é, aqueles gases que absorvem parte dos raios do sol e os redistribuem na forma de radiação. É o caso, principalmente, do monóxido de carbono. Estes gases são responsáveis pelas mudanças climáticas e aquecimento global, a faceta mais popular e evidente das consequências do impacto humano sobre a Terra.
Também alteramos os rios através da construção de barragens e poluímos os cursos d’água. E tem mais: modificamos parcela considerável do solo, destruímos parte significativa das florestas, liberamos quantidade enorme de produtos sintéticos e interferimos nos ciclos do nitrogênio e do fósforo. Ou seja, desorganizamos o local onde os seres vivos vivem (habitats) e as próprias comunidades biológicas, os chamados ecossistemas.
Invivo: E como surgiu o termo Antropoceno?
André: O termo foi proposto pelo químico Paul Crutzen (1933-2021) em 2000 e divulgado em 2002 em artigo assinado com o biólogo Eugene Stoermer (1934-2012). Desde então, ele tem ganhado circulação em publicações especializadas, mas também na imprensa leiga e na esfera cultural mais ampla, tornando-se popular. Ele representa o conjunto complexo de transformações e processos recentes de devastação ecológica. Ainda não foi totalmente aceito pela ciência que estuda a Terra, a geologia. Mas, apesar disso, ganhou amplitude e circulação na literatura leiga e especializada independentemente da validação deste campo disciplinar.
Muito embora o conceito tenha surgido entre as ciências que estudam a natureza e esteja relacionado à ideia que temos de que a história humana está entrelaçada à história do planeta, o Antropoceno chama atenção para as múltiplas formas de entender e habitar o mundo. Existem outras formas de vida e existência, além da nossa visão de mundo, que podem inclusive apontar para outras possibilidades de futuro.
Invivo: Na sua opinião, existem, de fato, evidências científicas de que estamos vivendo uma nova época geológica?
André: Um grupo de trabalho foi constituído em 2009 pela Comissão Internacional de Estratigrafia para reunir evidências que comprovem que estamos vivendo sob um novo regime geológico. A estatigrafia é um ramo da geologia que estuda as camadas de rochas do solo. E é essa área do conhecimento que é responsável por certificar o estabelecimento de um novo período geológico.
Este processo é complexo, rigoroso e muitas vezes demorado. O Holoceno só foi reconhecido como época geológica mais de cem anos depois de ter sido proposto. A estratigrafia define um novo período geológico a partir da identificação de um registro fóssil entre as camadas de rocha que atue como marcador dessa época ou era. Este marcador é referido como “Golden Spike”.
Ele precisa ter abrangência global, ou seja, pode ser encontrado entre os sedimentos de qualquer parte do globo. Um geólogo daqui a milhares de anos – supondo que ainda teremos humanos e geólogos – deve ser capaz de assinalar o Antropoceno a partir da identificação desse registro. Para isso, é preciso definir quando se inicia o novo período. No caso do Antropoceno, o início é objeto de debate.
De qualquer maneira, é importante sublinhar que há um acúmulo de evidências científicas que atestam que o Sistema Terrestre se encontra em um novo estado, sem precedentes na sua história geológica e que este novo estado deriva em grande medida do impacto das ações humanas.
Invivo: Por que o início do Antropoceno gera debate? Quais são as diferentes ideias que existem a respeito?
André: Para alguns cientistas (como Crutzen, Stoermer e outros), ele inicia no século 18, com a máquina a vapor, a Revolução Industrial e o surgimento de um sistema econômico baseado na utilização de combustíveis fósseis como carvão e petróleo.
Outros pesquisadores consideram que o começo do Antropoceno é mais antigo e que ocorre quando há a revolução agrícola, no período chamado de Neolítico. Naquele tempo, houve a formação de sociedades que passaram a viver em um só local e surgiram civilizações urbanas complexas. Neste caso, o início do Antropoceno seria sobreposto ao próprio Holoceno.
Há ainda alguns cientistas que definem o início do Antropoceno no século 17. O início seria em meio à colonização das Américas, ao extermínio dos povos originários, ao estabelecimento dos grandes cultivos agrícolas que exploravam trabalho escravo e à constituição do sistema capitalista em escala global.
No entanto, os cientistas que compõem o Grupo de Trabalho do Antropoceno e outros têm reforçado a tendência de considerar que a nova época tenha se iniciado depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, com o uso da energia nuclear.
Invivo: Por que há essa tendência maior de considerar que o Antropoceno iniciou a partir de 1950?
André: A partir dos anos 1950, surge um período que ficou conhecido como a Grande Aceleração, quando ocorreu a escalada de uma série de indicadores socioeconômicos. Entre eles, crescimento populacional, desenvolvimento urbano, avanço das indústrias, da agricultura, de serviços e comércio, da construção de infraestruturas de transporte e telecomunicações, da construção de barragens, do aumento do uso de energia elétrica e da intensificação do turismo. Esta escalada foi acompanhada da amplificação de modificações em vários fluxos e dinâmicas do Sistema Terrestre: aumento da taxa de extinção de espécies, aumento da temperatura média do planeta, maior desmatamento, modificações nos ciclos do fósforo e do nitrogênio, modificações no uso do solo, com aumento da proporção de terras utilizada pela agricultura; acidificação dos oceanos, produção de novas entidades químicas, entre outros.
Invivo: E a Grande Aceleração pode ser identificada nas camadas de rocha do solo?
André: A Grande Aceleração pode ser correlacionada a marcadores registrados nas camadas de rochas. Entre eles, os mais adequados são os radionuclídeos, produtos das operações nucleares. Mas, além disso, há o acúmulo de produtos sintéticos como plástico e cimento entre os sedimentos que documentam a história terrestre.
É importante sublinhar que a indicação de um início consensual é importante para a geologia. Mas, do ponto de vista da história, podemos identificar vários começos, a depender do tipo de processo e impacto que queremos ter sob foco. Ocorreram várias transformações de grande escala no decorrer da história humana, com efeitos nos ecossistemas, nas populações humanas e não-humanas. E elas são relevantes para a análise da trajetória da espécie humana no planeta, independente de apontarem para o início “oficial” do Antropoceno.
É também importante destacar que a datação desses marcos de origem tem implicações políticas. Não são definições baseadas apenas na ciência: eles certificam os principais processos que correlacionamos com o colapso ecológico e os responsáveis por eles. Portanto, apontam também para os tipos de medidas que devem ser acionadas para evitarmos um colapso ecológico irreversível e de consequências danosas para as diversas espécies que vivem no planeta.
Invivo: Na sua opinião, é possível que o Antropoceno possa ser também o começo do fim da Época Humana?
André: Caso as tendências atualmente em curso se perpetuem, é possível que as condições responsáveis por manter a vida no planeta Terra – humana e não-humana – sejam anuladas.
O conceito do Antropoceno provoca ansiedade por apontar para a possibilidade de que a espécie humana não seja capaz de sobreviver às novas circunstâncias do Sistema Terrestre. Muitas delas são inclusive difíceis de prever, já que as ciências trabalham em muitos casos com projeções baseadas em modelos matemáticos, mas estamos lidando com um sistema complexo e não-linear, composto por vários mecanismos e fluxos que sequer conhecemos por completo.
Além disso, vários cenários são delineados para escalas mais curtas de tempo, tornando difícil prever efeitos de longo prazo e na escala da evolução biológica e dos processos geológicos. Neste caso, as indicações de cenários possíveis deveriam ser o suficiente para mudarmos o rumo de ação.
Menos do que um atestado de extinção da espécie humana, o conceito do Antropoceno deve figurar como um chamado a imaginarmos outros padrões de organização socioeconômica, de interação com o planeta e de produção do conhecimento e da técnica. Deveríamos buscar padrões que conversem mais com as dinâmicas ecológicas que sustentam as associações entre humanos e não-humanos.
Por Teresa Santos
Data Publicação: 04/11/2022