“Não vai demorar que passemos adiante uma grande e bela ciência, que faz arte em defesa da vida.” (1928)
A 22 de abril de 1909, Oswaldo Cruz anunciou formalmente à Academia Nacional de Medicina a descoberta, por Carlos Chagas, de uma nova doença: a tripanosomíase americana ou moléstia de Chagas.
O processo da descoberta se iniciou em 1907, quando Chagas, pesquisador de Manguinhos, chegou a Lassance, no norte de Minas Gerais, com a missão de combater a malária entre os trabalhadores da Estrada de Ferro Central do Brasil. Lá, teve sua atenção despertada por um inseto que proliferava nas frestas das paredes de pau-a-pique das casas, alimentando-se à noite do sangue de seus moradores. Por atacar preferencialmente o rosto, era chamado de barbeiro pela população local.
Ao examinar estes insetos, Chagas encontrou neles um novo parasito, que chamou de Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. Verificou que este era patogênico para animais de laboratório e descobriu sua presença em animais domésticos. Paralelamente, já havia detectado nos habitantes da região alterações patológicas inexplicáveis. Começou então a pesquisar as ligações entre o novo parasito e a condição mórbida daquela população. A 23 de abril de 1909, Chagas descobriu pela primeira vez o protozoário no sangue de um ser humano: uma menina de três anos, Berenice, em plena fase aguda.
Era um feito único na história da medicina: Chagas descobriu o parasito – o Trypanosoma cruzi – e seu ciclo evolutivo; o vetor – o barbeiro – e seus hábitos; o reservatório doméstico – o gato; e a moléstia – a doença de Chagas.
A repercussão
A repercussão de sua descoberta foi enorme, tanto no Brasil quanto no exterior. A Academia de Medicina, fato singular em sua história, fez de Chagas membro extraordinário, já que, naquele momento, não havia vaga disponível. “0 descobrimento desta moléstia constitui o mais belo exemplo do poder da lógica a serviço da ciência. Nunca até agora, nos domínios das pesquisas biológicas, se tinha feito um descobrimento tão complexo e brilhante e, o que mais, por um só pesquisador,” diz Oswaldo Cruz.
O prêmio Schaudinn, conferido ao autor do melhor trabalho sobre protozoologia realizado até então, foi outorgado ao pesquisador em julho de 1912, como homenagem do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, na Alemanha. A consagração internacional possibilitou o prosseguimento das pesquisas sobre a nova doença, contando com a contribuição de vários pesquisadores de Manguinhos, entre os quais se destacam Gaspar Vianna, Arthur Neiva, Eurico Villela, Magarinos Torres, César Guerreiro, Astrogildo Machado, Evandro Chagas e Emmanuel Dias.
Chagas e seus colaboradores identificaram as diversas modalidades clínicas da doença, separando-as entre as fases aguda e crônica, descreveram minuciosamente a morfologia e o ciclo evolutivo do T. Cruzi no inseto transmissor e no hospedeiro vertebrado e estudaram a biologia das várias espécies de barbeiros transmissores. Realizaram investigações experimentais, produziram estudos sobre a patogenia (processo de evolução da doença) e a anatomia patológica (estudo das lesões provocadas pela doença por meio de necrópsias), desenvolveram métodos de diagnóstico, analisaram o papel dos reservatórios domiciliares e silvestres do T. cruzi e apontaram a relevância da doença como flagelo que impedia o desenvolvimento físico e social das populações rurais do país.
Entre novembro de 1922 e dezembro de 1923, a Academia Nacional de Medicina foi palco de uma grande controvérsia envolvendo a doença de Chagas. Um grupo de médicos, entre os quais, Afrânio Peixoto, professor de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Henrique Figueiredo de Vasconcellos, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, e Parreiras Horta, professor de parasitologia da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, contestaram a autoria da descoberta do T.cruzi, qualificaram a tripanossomíase americana de “doença inventada” e questionaram a importância que lhe era conferida pelos poderes públicos, afirmando não haver provas concretas de sua extensão para além dos limites de Lassance. Após examinar a questão, uma comissão da academia reconheceu que o autor da descoberta era efetivamente Chagas, mas manteve a dúvida quanto à distribuição da doença no território nacional.
Fim da controvérsia
Somente na década de 30, esta questão seria definitivamente resolvida. As pesquisas dos médicos argentinos Salvador Mazza e Cecilio Romaña, com a detecção de centenas de casos agudos na Argentina, comprovaram que a tripanossomíase não estava circunscrita ao Brasil, mas atingia também outros países do continente.
Na mesma época, pesquisadores brasileiras empenhavam-se em comprovar a ampla distribuição da doença de Chagas. Em 1935, o filho mais velho de Chagas, Evandro, criou, em Manguinhos, o Serviço de Estudos de Grandes Endemias, estimulando o desenvolvimento de investigações sobre a doença. Em 1940, o pesquisador Amilcar Vianna Martins descreveu 25 casos agudos da doença de Chagas na cidade de Bambuí, em Minas Gerais.
Em 1943, o então Instituto Oswaldo Cruz, instalou um centro de pesquisas em Bambuí, chefiado pelo pesquisador e colaborador de Carlos Chagas, Emmanuel Dias. O centro, transformado em 1980 no Posto Avançado de Pesquisas Emmanuel Dias, constituiu um marco decisivo para a afirmação efetiva da doença de Chagas como problema de saúde pública de grande relevância para o Brasil e para a América Latina.
Em 1959, o I Congresso Internacional de Doença de Chagas, realizado no Rio de Janeiro, tornaram evidente que a moléstia achava-se finalmente reconhecida como assunto de grande importância social e que a trilha científica aberta por Carlos Chagas deveria ser ampliada e aprofundada na busca de novos caminhos e soluções.
Infância e formação
Nascido a 9 de julho de 1879, em Oliveira, no oeste de Minas Gerais, Carlos Justiniano Ribeiro Chagas ficou órfão de pai aos quatro anos. Inicialmente, fez o preparatório para a Escola de Minas em Ouro Preto, atendendo ao desejo de sua mãe, que queria vê-lo formado em Engenharia. Aos 16 anos, porém, sua verdadeira vocação se manifestou e, em 1897, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Concluído o curso, começou a desenvolver sua tese abordando Estudos hematológicos no impaludismo (1903), o que o colocou pela primeira vez em contato com Oswaldo Cruz. Apesar de sua admiração pelo sanitarista, Chagas recusou um convite para permanecer em Manguinhos, por se sentir atraído pela clínica. Em 1904, instalou seu consultório particular no centro do Rio e casou-se com Íris Lobo. Dessa união nasceriam Evandro Chagas, em 1905, e Carlos Chagas Filho, em 1910.
Na Fiocruz
Em 1905, realizou, em Itatinga, interior de São Paulo, a primeira campanha bem sucedida contra a malária do país. Decide combater o mosquito no interior das casas, desinfetando-as mediante a queima de piretro. Sua teoria da infecção domiciliar da malária serviu de base para o efetivo combate à moléstia no mundo inteiro.
Voltando de São Paulo ingressou, em 1906, nos quadros do Instituto Oswaldo Cruz, onde trabalharia durante toda a vida. No ano seguinte, foi enviado por Oswaldo Cruz, junto com Arthur Neiva, para combater uma epidemia de malária em Xerém, na Baixada Fluminense.
Em 1912, Chagas realizou uma expedição ao vale do Amazonas, fazendo um completo levantamento médico-sanitário e das condições de vida dos habitantes daquela região. Em relatório ao Ministério da da Agricultura, Indústria e Comércio, Chagas e outros membros da expedições relataram situação de abandono médico e social em que viviam as populações da Amazônia, enfatizando a necessidade de medidas sanitárias como instrumento fundamental para viabilizar o desenvolvimento econômico da região.
Ao morrer Osvaldo Cruz em 1917, Chagas é nomeado, em 14 de fevereiro, diretor de Manguinhos. Durante sua gestão, procurou consolidar o estabelecido por Oswaldo Cruz à semelhança do Instituto Pasteur, cujas características fundamentais eram a autonomia administrativa e financeira e a estreita articulação entre a pesquisa, o ensino e a fabricação de produtos destinados à medicina humana e à veterinária, visando atender aos serviços de saúde pública do país.
No campo da pesquisa, sua administração privilegiou a investigação das causas e dos aspectos epidemiológicos e clínicos das endemias rurais. Foi responsável também pela criação de seções científicas, definidas por áreas de conhecimento e com as quais pretendia estabelecer uma divisão de trabalho mais nítida no Instituto. Na área de ensino, ampliou o programa dos Cursos de Aplicação do Instituto.
Quanto à área de produção, Chagas diversificou a pauta de medicamentos e produtos biológicos fabricados em Manguinhos, entre eles alguns desenvolvidos pelos próprios pesquisadores, e estimulou a comercialização destes produtos, fortalecendo assim a renda própria da instituição. A partir de 1920, o Instituto assumiu também a responsabilidade pelo controle da qualidade dos produtos utilizados na medicina humana no país, nacionais ou importados.
Saúde pública
Em 1918, Carlos Chagas foi chamado pelo governo brasileiro para chefiar a campanha contra a epidemia de gripe espanhola, que assolava o Rio de Janeiro. O sucesso de sua atuação pesaria decisivamente na escolha de seu nome para dirigir a reforma dos serviços de saúde pública do país, a partir de 1919.
Designado chefe do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado pelo novo regulamento sanitário, Chagas ampliou o poder de intervenção e regulação da União no campo da saúde pública e organizou diversos serviços especializados, como o de higiene infantil, de combate às endemias rurais, à tuberculose, à hanseníase, às doenças venéreas.
Dedica-se ainda à capacitação de quadros profissionais especializados na área da saúde pública, criando a Escola de Enfermagem Anna Nery. Estabeleceu ainda a formação de médicos sanitaristas, através do Curso Especial de Higiene e Saúde Pública, anexo à Faculdade de Medicina e ministrado pelos pesquisadores de Manguinhos, que garantia aos aprovados a nomeação para cargos nos serviços sanitários federais. Cria ainda o Hospital São Francisco de Assis, para servir de modelo à modernização dos serviços hospitalares do país.
Em 1925, foi nomeado professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde criou a cadeira de Medicina Tropical e estabeleceu as bases do estudo desta área em nosso país. Além disso, Carlos Chagas representou o Brasil em vários comitês internacionais, principalmente como membro permanente do Comitê de Higiene da Liga das Nações.
A 8 de novembro de 1934, morreu subitamente aos 55 anos.
Data Publicação: 03/12/2021