Esse texto é fruto de uma chamada de artigos exclusiva para participantes da “Oficina de Jornalismo de Ciência e Saúde para Comunicadores Populares”, realizada em 19 de agosto de 2023 no Museu da Vida Fiocruz, Rio de Janeiro (RJ).
Conheça mais sobre mandioca e a relação cultural desse alimento com os povos indígenas do Brasil
Você já comeu aipim, macaxeira, uaipi, maniva ou castelinha? Um dos alimentos mais versáteis tanto na manipulação quanto no nome, a mandioca (nome científico Manihot esculenta) está presente na culinária brasileira desde antes da chegada dos portugueses ao país em 1500. E a relação desse tubérculo com os povos originários vai além da alimentação. Ela está no prato, mas também no folclore e nos mitos dos povos indígenas do Brasil!
Tem mandioca nas lendas indígenas…
A mandioca é cultivada há mais de quatro mil anos e é vista como um alimento sagrado pelos indígenas. Existem várias explicações diferentes para o seu surgimento, porém, uma das mais populares é um mito dos povos tupis que agora faz parte do folclore brasileiro.
Segundo a lenda, Mani, uma menina indígena de pele branca, morreu e foi enterrada em uma oca por seus pais. Durante alguns dias, a terra permaneceu úmida devido às lágrimas daqueles que choravam no local com saudades da menina. Para a surpresa de todos, tempos depois, surgiu uma plantinha no local. Ela foi batizada como ‘Manioca’, que na língua tupi-guarani significa “casa de Mani”. Com o passar do tempo, o nome tornou-se o que conhecemos atualmente.
Fig 2 e 3. A planta cresce como um arbusto (esquerda) e pode atingir até cinco metros de altura. O que consumimos, geralmente, são as raízes da planta (direita). Crédito: Supersmario/iStock e tinglee1631/iStock.
De acordo com Nelson Silva de Oliveira, historiador formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “a comida serve de alimento para contar a história e a cultura de um povo. Não só a mandioca, mas a feijoada, angu à baiana e outros”. Isso significa que conhecer a história da mandioca nos ajuda a entender também como o território nomeado pelos povos tupi-guarani como ‘Pindorama’ tornou-se o Brasil que conhecemos hoje.
E também tem mandioca na alimentação indígena!
O cultivo do tubérculo, como explica o escritor Pinto de Aguiar no livro ‘Mandioca – Pão do Brasil’, de 1982, foi importante para fixar os indígenas no território. Ou seja, muitos passaram a viver em locais onde plantavam esse alimento.
Além disso, os indígenas da América do Sul venceram um desafio importante: a toxicidade da planta. Como lembra Jaime Rodrigues, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em um artigo da Revista Brasileira de História de 2017, eles conseguiram transformar essa raiz, que é potencialmente venenosa, ainda mais quando consumida crua, em um alimento básico de sua dieta. Ela também se tornou fundamental na dieta dos colonizadores europeus, dos navegadores e dos africanos escravizados, chegando até o consumo de alimentos dos dias atuais.
Ainda hoje, diversos povos indígenas brasileiros têm esse alimento muito presente no seu dia a dia. Os Ticunas, maior povo indígena da Amazônia brasileira, são um exemplo disso. Eles cultivam e a utilizam para fazer farinha, tapioca (produto feito com a goma da mandioca) e outros derivados. Você pode saber mais sobre isso aqui no Invivo.
Já moradores da cidade indígena Iauaretê (localizada na região do Alto Rio Negro, noroeste amazônico) compartilham o uso do caxiri – bebida alcoólica fermentada à base de mandioca e frutas. As bebidas alcoólicas chamadas de fermentadas são aquelas feitas a partir de um líquido que sofreu transformação pela ação de microrganismos. Esse mesmo processo é usado para a produção de cerveja e vinho.
Tradicionalmente, o consumo do caxiri entre povos indígenas na Amazônia acontece em festas e, principalmente, em ritos de iniciação masculina. Isto é, cerimônias que marcam uma mudança: o jovem indígena passa a ser considerado adulto em seu grupo.
Outra preparação tradicional da culinária indígena de povos da Região Norte do país é o berarubu. Esse bolo de mandioca com carne é preparado em grandes folhas de bananeira e assado embaixo da terra para servir toda a aldeia.
Também na Região Norte do país, os Apurinã consomem o tubérculo na forma de farinha, beiju (produto feito com a massa da mandioca) e caiçuma (outra bebida alcoólica fermentada).
A importância para os povos indígenas e também para outras populações ao redor do mundo alçou a mandioca ao título de alimento do século 21 pela Organização das Nações Unidas (ONU), após um esforço para que diversos países aumentassem a sua produção.
Do prato dos povos indígenas para o nosso
Herdando as características dos povos originários, hoje o tubérculo é consumido em todo o Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 foram produzidos quase 18 milhões de toneladas desse alimento no país. O Brasil é o quinto maior produtor do mundo, segundo dados de 2021 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês). Por aqui, a mandioca sem processamento (in natura) é facilmente encontrada nas feiras populares. Sua farinha também pode ser adquirida em supermercados de todas as regiões do país. A tapioca, por exemplo, pode ser apreciada em lanchonetes e nas casas de diversas regiões do país.
Fig 5 e 6. Seja natural (in natura) (acima) ou na forma de farinha e tapioca (abaixo), ela pode ser encontrada nas feiras e supermercados de todo o país. Crédito: gustavomellossa/iStock e golero/iStock
O historiador Nelson Silva, que também é diretor do CIEP 175 José Lins do Rego, em São João de Meriti (RJ), explica que a mandioca faz parte da história do Brasil. “Ela veio da cultura indígena e hoje é servida nas escolas. Os alunos precisam saber as histórias que envolvem esse alimento”, destacou em entrevista ao Invivo.
“A feijoada, por exemplo, tem uma história de opressão por usar carnes não nobres. A mandioca tem também uma série de histórias que vem da colonização, da resiliência (capacidade de se adaptar frente a situações desafiadoras) do povo brasileiro de Norte a Sul”, conclui Nelson Silva, reforçando a importância da mandioca na alimentação do país.
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Fontes consultadas:
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Walzburiech, Daniela. Mandioca é fonte de energia e imunidade: 9 benefícios do ‘alimento do século’. Globo Rural. Disponível em: https://globorural.globo.com/agricultura/hortifruti/noticia/2024/01/mandioca-e-fonte-de-energia-e-imunidade-9-beneficios-do-alimento-do-seculo.ghtml Publicação: 16 jan 2024. Acesso: 08 fev 2024.
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Moehlecke, Renata. Jovens indígenas podem estar sujeitos ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Agência Fiocruz de notícias. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/jovens-ind%C3%ADgenas-podem-estar-sujeitos-ao-consumo-excessivo-de-bebidas-alco%C3%B3licas Publicação: 24 maio 2010. Acesso: 08 de fevereiro de 2024.
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Núcleo de Extensão da USP sobre alimentação sustentável (Sustentarea)- 22 de abril, uma comemoração à Mandioca: a raiz que nos fez nação. Disponível em: https://www.fsp.usp.br/sustentarea/2022/04/22/22-de-abril-uma-comemoracao-a-mandioca-a-raiz-que-nos-fez-nacao/ Publicação: 22 abr 2022. Acesso: 02 mar 2024.
Rodrigues, Jaime. “De farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem”: uma história da mandioca em perspectiva atlântica. Dossiê: O protagonismo indígena na história. Rev. Bras. Hist. 37(75):May-Aug 2017. https://doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-03 Acesso: 02 março 2024.
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Brasil, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Produção de Mandioca. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/producao-agropecuaria/mandioca/br. Acesso: 19 mar 2024.
Por Wesley Brasil
Data Publicação: 19/04/2024
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