Fig 1. Os dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz que tiveram seus direitos políticos cassados em 1970. Da esquerda para direita: Augusto Cid Mello Perissé, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Haity Moussatché, Fernando Braga Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes, Massao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira e Domingos Arthur Machado Filho. Crédito: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Ficoruz

 

Saiba mais sobre o dia em que pesquisadores da Fiocruz tiveram seus direitos políticos suspensos durante a ditadura militar brasileira

 

Você sabia que já houve um “massacre” na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)? Sim! Mas, calma! Apesar de muito grave, o episódio conhecido como Massacre de Manguinhos não deixou mortos. A maior vítima foi a ciência brasileira, alvo de um grande ataque em 1970, durante a ditadura militar no Brasil. Vamos entender melhor essa história?

 

Um mergulho no tempo…

 

Fig 2. O período da ditadura militar (1964 a 1985) foi marcado pela repressão. A cena é de uma manifestação realizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro em 1970. Crédito: João Roberto Ripper/Fiocruz Imagens

 

Primeiro, precisamos voltar a 1964, ano em que foi iniciado o regime militar no Brasil, também conhecido como ditadura militar. Até 1985, o país esteve sob controle das Forças Armadas Nacionais, isto é, Exército, Marinha e Aeronáutica. Foi uma época de autoritarismo, ou seja, a liberdade individual foi restringida. E, não à toa, foi justamente nesse período que ocorreu o Massacre de Manguinhos.

O primeiro presidente da ditadura militar no Brasil foi Humberto Castelo Branco (1897-1967). Ele tomou posse em abril de 1964 e em junho do mesmo ano trocou a direção do Instituto Oswaldo Cruz. Castelo Branco substituiu o então diretor Joaquim Travassos da Rosa (1898-1967) por Francisco de Paula Rocha Lagoa (1919-2013). E por que essa mudança?

O pesquisador Daniel Elian, mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e doutorando em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), nos ajuda a responder essa e outras dúvidas relacionadas ao Massacre de Manguinhos.

Segundo Elian, além de ter uma trajetória no Instituto Oswaldo Cruz, Rocha Lagoa havia cursado a Escola Superior de Guerra. “Como os militares estavam no poder, foram buscar um cientista não tão prestigiado, mas que seguisse a linha do regime militar”, explica ao Invivo.

De fato, as ações seguintes mostram que o novo diretor, infelizmente, estava bastante alinhado ao pensamento militar.

 

Inquéritos, mudanças de chefias e mais

Com o início da ditadura, muitos professores universitários e pesquisadores de todo o país passaram a ser investigados pela polícia por possíveis ‘infrações’. O clima de tensão também alcançou o Instituto Oswaldo Cruz e vários cientistas da instituição tornaram-se alvo de investigações policiais. Entre as supostas acusações estavam, por exemplo, ‘corrupção’, atentar contra as ‘normas’ (subversão) e comunismo.

Além dos inquéritos, o novo regime impôs mudanças em cargos de chefia de departamentos e divisões do Instituto Oswaldo Cruz. A medida, segundo Elian, que é também coordenador de Gestão de Acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e autor do livro “Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970)”, buscava aumentar o controle do governo sobre a instituição.

Em 1966, o próprio Rocha Lagoa acusou 16 colegas do instituto que dirigia de conspiração. Com a ação, os acusados tiveram que prestar depoimentos.

Já, em outubro de 1969, Rocha Lagoa sai da direção do Instituto Oswaldo Cruz e se torna ministro da Saúde. A mudança ocorreu durante o governo de Médici (1905-1985). Um dado importante é que o Instituto Oswaldo Cruz, assim como acontece ainda hoje com a Fiocruz, era ligado ao Ministério da Saúde.

Seis meses após Rocha Lagoa alcançar a chefia do Ministério da Saúde, ocorreu o episódio conhecido como Massacre de Manguinhos. “Na verdade, foi tudo o que ele (Rocha Lagoa) iniciou, desde os primeiros dias dos atos dele, que levou à cassação. E ele no Ministério, conseguiu, de fato, pôr em prática o que queria”, explica Elian.

 

Fig 3. Notícias de jornais da época comentam a cassação dos cientistas de Manguinhos. Crédito: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

 

O ‘dia D’: o Massacre de Manguinhos

Em 1° de abril de 1970, dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz têm seus direitos políticos cassados. Foram eles: Augusto Cid Mello Perissé, Domingos Arthur Machado Filho, Fernando Braga Ubatuba, Haity Moussatché, Herman Lent, Hugo de Souza Lopes, Massao Goto, Moacyr Vaz de Andrade, Sebastião José de Oliveira e Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque.

Entre as acusações, estavam algumas das mesmas infrações pelas quais muitos já haviam sido investigados antes, sem, no entanto, terem sido declarados culpados. Isto é, ‘subversivos’, ‘comunistas’, entre outras acusações.

A cassação ocorreu alguns anos após a criação de duas medidas de repressão importantes: o Ato Institucional n° 5 (AI-5) de 1968 e o Ato Institucional n° 10 (AI-10) de 1969. O primeiro (AI-5) reforçou o autoritarismo dos governantes, ampliando mecanismos de censura (e tendo como consequências mais casos de torturas físicas e prisões ilegais). Já o segundo (AI-10) determinou cassações, suspensão de direitos políticos e demissões de funcionários públicos.

As investigações contra os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz consideraram que os cientistas se enquadravam no AI-5. E o AI-10, por sua vez, possibilitou dar sequência à punição. Mas a cassação efetiva só veio após o afastamento do general Armando Barcellos, então chefe do órgão que conduzia as investigações contra os cientistas no Ministério da Saúde. Rocha Lagoa foi o responsável direto por esse afastamento. E, segundo o pesquisador Daniel Elian, tudo indica que o general era contrário às cassações. “Quando ele (Armando Barcellos) sai do cargo, revela que é preocupante o que está acontecendo no Ministério da Saúde. Ele sai do cargo no final de fevereiro de 1970 e um mês depois o Rocha Lagoa consegue a cassação dos cientistas”, explica.

Com a cassação, os cientistas foram obrigados a se aposentar. Ficaram proibidos de trabalhar e exercer qualquer função em instituição pública ou privada que recebesse investimento público no país. O que, como lembra o historiador, representava quase todas as instituições de ensino e pesquisa do país.

A cassação, ou seja, a suspensão dos direitos políticos dos dez cientistas do Instituto Oswaldo Cruz ficou conhecida como Massacre de Manguinhos. A expressão foi criada por um dos pesquisadores cassados, Herman Lent, em seu livro sobre o episódio. A expressão é inclusive o título do livro de Lent, publicado originalmente em 1978.

 

Quem eram os 10 cientistas cassados pela Ditadura Militar no episódio conhecido “Massacre de Manguinhos”?

Haity Moussatché (1910-1998)

Médico e bioquímico. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e idealizador da Universidade de Brasília (UnB).

Herman Lent (1911-2004)

Médico e pesquisador. Dedicou-se ao estudo de parasitas. Foi um dos maiores especialistas em doença de Chagas do país.

Moacyr Vaz de Andrade (1920-2001)

Químico, especialista em fungos. Entre os temas que pesquisava, estava a ação de fungos no controle de tumores.

Augusto Cid de Mello Perissé (1917-2008)

Farmacêutico, especialista em química e bioquímica.

Hugo de Souza Lopes (1909-1991)

Médico veterinário. Estudou moscas, cujas larvas parasitam animais.

Sebastião José de Oliveira (1918-2005)

Médico veterinário, especialista em insetos. Descobriu novas espécies de mosquitos e foi o primeiro cientista negro do Instituto Oswaldo Cruz.

Fernando Braga Ubatuba (1917-2003)

Médico, especialista em bioquímica. Dedicou-se ao estudo de hormônios.

Tito Arcoverde Cavalcanti (1905-1990)

Médico, estudou o funcionamento dos seres vivos, ramo do conhecimento conhecido como fisiologia.

Masao Goto (1919-1986)

Médico, professor e pesquisador. Dedicou-se ao estudo de doenças causadas por fungos. Atuava como médico, atendendo pacientes com infecções por fungos, alergia e outros problemas relacionados ao sistema de defesa do corpo.

Domingos Arthur Machado Filho (1914-1990)

Médico sanitarista, professor e pesquisador, dedicado ao estudo de parasitas.

 

Crédito das fotos: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

 

Por que os cientistas do Instituto Oswaldo Cruz foram cassados?

Mas o que teria motivado o então ministro da Saúde Rocha Lagoa a promover a cassação dos colegas? Para o pesquisador Daniel Elian, o motivo não foi apenas pessoal. Por trás de tudo, parece estar uma divergência entre governo e pesquisadores sobre o que deveria ser a ciência.

— Os cientistas que foram cassados tinham uma visão diferente, eles queriam criar um Ministério da Ciência e queriam que o Instituto Oswaldo Cruz passasse a fazer parte dessa nova pasta. Com isso, seria possível manter ‘ensino, produção e pesquisa’ como pilares da instituição. Já o governo militar, Rocha Lagoa e o Ministério da Saúde acreditavam que a base da instituição deveria ser a ‘produção’ de vacinas e outros produtos, explica Elian.

Segundo o pesquisador, a reivindicação e a insistência pela criação do Ministério da Ciência e pela mudança de pasta do Instituto foram consideradas ideias contrárias ao posicionamento do governo.

 

Fig 4. Ilustração de Oscar Niemeyer para a edição original do livro ‘O Massacre de Manguinhos’, de Herman Lent (1978). Crédito: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

 

Qual o impacto do Massacre de Manguinhos?

O evento foi considerado um verdadeiro ‘massacre’ porque, naquela época, segundo Elian, 10 cientistas representavam cerca de 10% de toda a equipe do Instituto Oswaldo Cruz. Ou seja, a medida teve um peso muito grande sobre o quadro de pesquisadores da instituição.

Além disso, a cassação teve um impacto sobre novos cientistas. Muitos deixaram de concluir suas formações por conta da saída de seus mentores. Várias linhas de pesquisa também foram interrompidas, assim como parcerias com universidades. Laboratórios de pesquisa foram fechados e coleções biológicas ficaram abandonadas (e muitas delas foram perdidas).

 

Fig 5. Em 2005, ou seja, 35 anos após o Massacre de Manguinhos, mais de 8 mil exemplares da coleção de insetos que haviam sido enviados em 1970 à Universidade de São Paulo retornaram à Fiocruz. Crédito: Peter Ilicciev/Fiocruz Imagens

 

O evento de 1970 também impactou a vida pessoal dos cientistas cassados e a vida de seus familiares. Alguns se mudaram para outros países, como Haity Moussatché para Venezuela, Fernando Ubatuba para Inglaterra e Augusto Perissé para Alemanha e Moçambique, entre outros.

Também houve pesquisadores que permaneceram no país em consultórios e universidades particulares, como na Universidade Santa Úrsula (RJ). Alguns ficaram até ‘escondidos’ em instituições públicas, como Souza Lopes no Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O retorno

 

Fig 6. Cerimônia de reintegração dos dez cientistas cassados na Fiocruz em 1986. Crédito: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

 

Em 1979, foi sancionada a Lei de Anistia no Brasil. Com ela, todos que haviam sido acusados de crimes políticos entre setembro de 1961 e agosto de 1979 foram ‘perdoados’. Ou seja, a lei contemplava os 10 cientistas do Instituto Oswaldo Cruz.

Já em agosto de 1986, um ano após o fim do regime militar no Brasil, os dez cientistas cassados foram reintegrados à Fiocruz. A cerimônia ocorreu na própria sede da instituição em Manguinhos.

Naquela época, o médico sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003) era o presidente da instituição. Além dele, o evento contou com outras personalidades importantes, como o ator Mário Lago (1911-2002), presidente da Comissão Nacional de Anistia, Ulysses Guimarães (1916-1992), deputado federal e presidente da Câmara, e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), então vice-governador do Rio.

Todos os cientistas cassados foram reintegrados à Fiocruz, com exceção de Herman Lent, que preferiu continuar na Universidade Santa Úrsula, onde atuava como professor e pesquisador desde 1976.

Para Elian, é importante contar e recontar a história do Massacre de Manguinhos para que isso não aconteça novamente, para que o próprio regime autoritário não retorne.

— É importante demonstrar o que é ciência, a importância da ciência para os avanços. Acho que a pandemia de Covid-19 mostrou isso. Mas também mostrou essa outra face do negacionismo. Se antes a gente estava discutindo sobre ciência, se íamos produzir vacinas e medicamentos e/ou fazer pesquisas em laboratório, agora a gente está negando a ciência, um retrocesso. Imagina se o Instituto Butantan e a Fiocruz tivessem sido desmontados atualmente? Como teria sido na pandemia?, questiona o pesquisador.

Ficamos então com essa reflexão! Para você, o que teria acontecido na pandemia de Covid-19 se estivéssemos enfrentando um ‘massacre’ científico como o de 1970?

Fontes consultadas:

Lent, Herman. O Massacre de Manguinhos. Rio de Janeiro: Fiocruz: Edições Livres, 2019. 112 p. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33216

Santos, DGE. Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970). São Paulo: Hucitec Editora; 2020.

IOC Fiocruz. O “Massacre de Manguinhos” e a Coleção Entomológica do IOC. Disponível em: https://www.ioc.fiocruz.br/noticias/o-massacre-de-manguinhos-e-colecao-entomologica-do-ioc. Publicação em 08 set 2011. Atualização em: 10 dez 2019.

Costa J, Cerri D, Sá MR de, Lamas CJE. Coleção entomológica do Instituto Oswaldo Cruz: resgate de acervo científico-histórico disperso pelo Massacre de Manguinhos. Hist cienc saude-Manguinhos [Internet]. 2008Apr;15(2):401–10. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702008000200010

Wikipédia. Massacre de Manguinhos. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Manguinhos

*Todos os sites foram acessados em 25 mar 2025.

 

Por Teresa Santos

Data Publicação: 01/04/2025