Fig 1. Charge da Revolta da Vacina publicada no ‘O Malho’ em outubro de 1904. Crédito: Leônidas / Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz.

 

Conheça outros fatores que motivaram a Revolta da Vacina e vão além da imunização obrigatória contra a varíola

Mais de cem anos atrás, a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada Revolta da Vacina. O confronto, que envolveu cidadãos e autoridades, começou em 10 de novembro de 1904 e durou quase uma semana. Os manifestantes e a polícia se enfrentaram em vários bairros da então capital federal do país. Houve tiros, gritos, pedradas, lojas quebradas, bondes incendiados e muitas barricadas, além de dezenas de mortos, centenas de feridos e quase mil prisões…

Tudo isso porque a população rejeitava a vacinação obrigatória contra a varíola (antivariólica), certo? Mais ou menos! Hoje em dia, os historiadores concordam que há mais coisas por trás dessa história.

 

A lei da vacinação obrigatória

No início do século 20, os casos de peste bubônica, febre amarela e varíola causavam preocupação na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. O problema também afetava outras cidades do país.

Em 1904, a população carioca enfrentou uma epidemia de varíola, doença muito contagiosa que é causada pelo vírus Orthopoxvirus variolae. Apenas nos cinco primeiros meses do ano, foram registradas 1.800 internações pela doença.

Tentando conter a epidemia, o governo propôs uma lei que tornava a vacinação antivariólica obrigatória. A aprovação veio em 31 de agosto de 1904. O médico sanitarista Oswaldo Cruz era o diretor geral de Saúde Pública, cargo equivalente ao de ministro da Saúde. Ele estava à frente da campanha de vacinação em massa.

Apesar da vitória no Congresso, a nova lei desagradou muita gente. Opositores do governo, como, por exemplo, monarquistas que haviam sido depostos pelo novo regime (República), se uniram a outros setores descontentes – comerciantes, donos de imóveis e parte da classe média.

A imprensa, por sua vez, passou a divulgar frequentemente denúncias de supostas mortes causadas pela vacina e de abusos cometidos pelos agentes de saúde, que eram chamados de inspetores sanitários. As críticas apareciam em diferentes formatos, desde charges até artigos.

 

Fig 2. A charge ‘O espeto Obrigatório’, publicada em outubro de 1904 na ‘A Avenida’, criticando a lei que tornou a vacinação antivariólica (contra a varíola) obrigatória na cidade do Rio de Janeiro. Crédito: Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz

 

E a população? O que o povo achava?

Com as notícias dos jornais e o cenário político desafiador, o clima na capital do país não era dos melhores. O povo não gostava da ideia de ter a casa invadida e ser vacinado à força. E essa insatisfação se somou a uma série de outros problemas.

Em 1904, Rodrigues Alves era o presidente do país. Pereira Passos era o prefeito do Rio de Janeiro. Ambos estavam fazendo grandes obras na cidade para mudar a imagem do Brasil no exterior. O período ganhou até um nome nada simpático, o chamado ‘bota-abaixo’.

As transformações eram muitas! Rios sendo canalizados, morros aterrados, habitações derrubadas, ruas alargadas e grandes avenidas surgindo. Mas, para tanta mudança, muita gente teve a casa demolida. E, claro, a população mais pobre foi a principal atingida. Cerca de 700 habitações coletivas foram demolidas, deixando desabrigadas pelo menos 14 mil pessoas. E para onde elas foram? Muitas migraram para outras áreas da cidade, principalmente para os morros, periferias e bairros mais distantes da área central. E as mudanças iam além! As intervenções buscavam mudar até costumes da população.

 

Fig 3. Construção da Avenida Beira Mar, no Centro do Rio de Janeiro. Crédito: Malta, Augusto/ BNDigital do Brasil (domínio público)

 

Pereira Passos buscou eliminar a mendicância, ou seja, ninguém podia mais pedir dinheiro, comida ou outras coisas nas ruas da cidade. As pessoas nessa situação eram internadas em asilos ou presas. Também proibiu a venda de bilhetes de loteria, ambulantes passaram a ter que adquirir licenças, instituiu a captura de cães de rua e impostos para quem mantivesse esses animais em casa. Também não eram mais permitidos fogos de artifício, pipas, balões, cultos de origem africana, incluindo candomblé, serenatas e boemia.

O InVivo entrevistou a historiadora Tânia Salgado Pimenta, coordenadora do Núcleo de Estudos em Escravidão, Raça e Saúde (NERAS), pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz) e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz. Segundo ela, alguns fatores que contribuíram para a Revolta da Vacina foram a resistência ao processo de mudanças dos costumes e aos agentes que ‘forçavam’ as mudanças, como políticos, higienistas, empresários e às forças de repressão.

Para os historiadores atuais, o confronto também foi motivado por outros aspectos. Entre eles, está a insatisfação com as dificuldades econômicas e com as transformações urbanas, além do descontentamento com estratégias violentas por parte de agentes do estado, como a invasão de casas e a ofensa à honra do chefe de família para a vacinação das mulheres da casa. Isso porque, 120 anos atrás, descobrir o braço das mulheres era visto como um atentado ao pudor.

Além disso, Pimenta explica que “a vacinação também pode ter sido vista como uma intervenção sobre as práticas de variolização (um método milenar de imunização contra a varíola) e outros rituais de purificação, associados a divindades cultuadas por grupos afrodescendentes”.

 

A cronologia da Revolta da Vacina

Com esse turbilhão de transformações e eventos, o ‘caldo começou a transbordar’. Em meados de outubro de 1904, militares prepararam um golpe de estado. No entanto, o plano foi descoberto e não foi adiante. Já, em 5 de novembro de 1904, foi fundada a ‘Liga contra a Vacinação Obrigatória’, no Centro das Classes Operárias. O movimento surgiu em um ato que reuniu mais de duas mil pessoas.

Em 10 de novembro, a polícia, que recebera ordens de proibir reuniões públicas, tentou prender um grupo de estudantes que pregava resistência à vacinação. As pessoas que reagiram foram espancadas. Ocorreram, então, as primeiras prisões.

De 11 a 16 de novembro, foram registrados confrontos em massa em muitos locais. Ocorreram ações na região central da cidade, como no Largo de São Francisco, Praça Tiradentes, Gamboa e Saúde, na zona norte, por exemplo, Tijuca, Engenho Novo e Vila Isabel, e também na zona sul, em bairros como Catete, Botafogo, Laranjeiras e Urca.

— Os jornais descreviam a revolta como sendo marcada por tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito e estabelecimentos e casas de espetáculos fechados, bondes assaltados e queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados, explica Pimenta.

 

Fig 4. Bonde é tombado pela população durante a Revolta da Vacina. Crédito: Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz

 

Alguns oficiais se juntam à Revolta, assim como cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha. Do lado oposto, o governo recebe reforço da Marinha, inclusive com navios posicionados estrategicamente em áreas para atacar os manifestantes, bem como de batalhões dos Estados de Minas Gerais e São Paulo.

No dia 16 de novembro, foi decretado estado de sítio. Essa medida é instituída quando a ordem pública está ameaçada. Ela confere ao presidente poderes extras, podendo suspender garantias individuais e restrições de direitos fundamentais. Na mesma data, o governo revogou a lei de obrigatoriedade da vacina, o que, segundo a historiadora da COC/Fiocruz, acabou desarticulando os manifestantes.

“No dia 18 de novembro, a situação era de normalidade na cidade e, nos anos seguintes, a vacinação foi sendo incorporada no cotidiano da população”, conta Pimenta.

E qual foi o saldo? Ao todo, a Revolta da Vacina deixou 30 mortos, 110 feridos, 945 presos, sendo 461 deportados.

 

Por que ainda precisamos falar sobre a Revolta da Vacina?

Para a pesquisadora, depois que passamos pela pandemia de Covid-19 e por diversos questionamentos acerca da imunização, refletir sobre a Revolta da Vacina nos ajuda a pensar sobre a relação de médicos, cientistas e autoridades sanitárias com a população em geral.

— Percebemos a importância da educação, do diálogo e da divulgação científica para tratar de assuntos relacionados à saúde pública. Destaco que uma postura arrogante, identificada mesmo quando se tenta fazer divulgação científica, que vimos durante a pandemia, acaba por ser um desserviço à saúde pública, considera Tânia Pimenta.

Ela lembra ainda que, quando falamos em Revolta da Vacina, nos remetemos à varíola, que é a primeira (e única!) doença erradicada por meio da vacina. Isso mostra a importância da vacinação na saúde da população não só no Brasil, mas em todo o mundo.

 

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Fontes consultadas:

Museu da Vida Fiocruz – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Exposição Revolta da Vacina. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/paineis.html. Acesso: 31 out 2024

 

Por Teresa Santos

Data Publicação: 08/11/2024